M. Paiva
Encontrei, há dias, um velho baboso, de certeza bastante míope, encostado a uma das paredes do grande prédio "Rainha", desta cidade de Oliveira de Azeméis
Estranhei aquela atitude, tanto mais que o homem tartamudeava, sozinho, coisas que mal se entendiam. Aproximei-me um tanto receoso, até porque ele me parecia atamancado. Consegui entendê-lo. Desabafava assim: "Afinal dizem que o edifício "Rainha" é muito bonito, e eu só vejo uma porcaria de uma pedra, que parece vidro, com duas moscas esborrachadas e secas...".
O homem tinha a "sua razão", porque, de facto, as moscas estavam lá! Bem esborrachadas e secas!... Só que, para se apreciar a construção daquele grandioso edifício, é preciso desligar-se dessas ilusórias banalidades (que não passavam de moscas mortas e secas) e voar mais longe para descobrir toda a grandeza e harmonia daquele conjunto!...É preciso saber penetrar, bem fundo, mas sem desfoques estrábicos, na beleza das coisas, e também no significado dos acontecimentos!... São as nobres capacidades de sentir a razão de ser dos factos, ou seja, aquilo que constitui o essencial dos acontecimentos, despidos do que é efémero.
Esta cena fez-me lembrar certas coisas que se vão passando por cá e por esse mundo além. É ver, por exemplo, o que se passa em muitas das nossas comunidades cristãs:
Faz-se uma festa em honra de um santo ou de uma santa, com procissão e tudo, festeja-se um baptizado ou um casamento, um grupo de jovens fazem a sua Profissão de Fé depois de longos anos de preparação, e muita gente fica a lembrar-se apenas dos foguetes, dos ranchos folclóricos, da boda, das fotografias ("para a posteridade"), do modo como as flores estavam dispostas nos altares, e como se vestiam as pessoas. Apenas o folclore, o fútil, o transitório!
Somos tão superficiais (ou tolos?)! Eu conheci um homem que, a primeira vez que comprou uma banana, comeu a casca e deitou fora o miolo! E ainda se queixou que "aquilo" era muito duro!... Afinal tinha razão!
Todas estas coisas não passam das tais moscas esborrachadas e secas, sobre as quais tantos se limitam a encostar o nariz sem verem mais nada para além disso!... E o resto? O que motivou todas essas solenidades nas igrejas? Como se prepararam tais festas? Que perspectivas para o dia de amanhã, para o futuro das vidas envolvidas nesses actos públicos?
Quem se lembra dos compromissos assumidos, que também as comunidades têm de viver?
Quando não se é capaz de assimilar, em ordem ao futuro, a vivência que essas solenidades exigem, fica-se com o olhar vesgo e amarrado, sem nada ver para além daqueles momentos fugazes, quais moscas esborrachadas que o velho baboso apenas conseguia ver com o seu estrabismo...
Precisamos de vistas largas, olhares postos no horizonte da nossa caminhada, com a consciência de peregrinos que somos, em marcha para Aquele que nos espera de braços abertos. De outra forma a vida não tem sentido, nem encontraremos esses braços que nos aguardam! Razão tinha Santo Agostinho quando escreveu. "Aquele que te criou sem ti, não te pode salvar sem ti".
É que a salvação tem de ser completada por nós e em nós; e isto é uma grande prova do Amor de Deus que assim nos quer associar à sua Obra.